Washington faz guerra à paz na Síria

https://journal-neo.org/2019/04/20/us-defeat-in-syria-transforms-into-campaign-of-spite/

A guerra por procuração fabricada pelos EUA contra a Síria, que começou em 2011, e a aceleração da chamada «Primavera Árabe», acabou numa derrota absoluta para Washington.

O seu objectivo principal de derrubar o governo sírio ou de dividir a nação e destruí-la como fez com a Líbia, não apenas falhou – mas desencadeou uma resposta robusta da Rússia e do Irão, com ambas as nações adquirindo um grau de influência inédito, tanto na Síria, como em toda a região.

Lamentando a derrota americana na Síria, nas páginas de «Foreign Affairs», Brett McGurk – um funcionário da carreira diplomática de Washington, cujo cargo mais recente era de «enviado especial presidencial para a coalição global contra o Estado Islâmico do Iraque e do Levante»: Ele demitiu-se em protesto pelos alegados planos de retirada dos EUA da sua ocupação ilegal na Síria oriental.

As longas queixas de McGurk estão cheias de contradições, parágrafo a parágrafo, o que ilustra a falta duma legítima e unificada orientação subjacente à política dos EUA na Síria.

No artigo intitulado, “Hard Truths in Syria: America Can’t Do More With Less, and It Shouldn’t Try,” McGurk alegava (sublinhado adicionado):

Durante mais de quatro anos, ajudei a conduzir uma resposta global ao crescimento do Estado Islâmico (ISIS), um esforço que permitiu destruir o «califado» do ISIS no coração do Médio Oriente, que tinha servido como magnete para djihadistas estrangeiros e de base para levar a cabo ataques terroristas em todo o mundo.

e McGurk também escrevia (sublinhado adicionado):

Na sequência de um telefonema do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, Trump deu uma ordem, de surpresa, para retirar todas as tropas dos EUA da Síria, aparentemente sem atender às consequências. Trump depois modificou esta ordem – o seu plano, visto que enquanto escrevo este ensaio, cerca de 200 soldados dos EUA devem ficar no nordeste da Síria e outros 200 devem permanecer em al-Tanf, uma base isolada no sul-oeste do país. (A administração também espera, provavelmente em vão, que outros membros da coalição substituam as suas próprias forças, as forças dos EUA em retirada.)

Se algo do que McGurk diz é verdadeiro, então o ISIS era, não só uma ameaça para os Estados Unidos, mas para todos os membros da coalição, sobretudo as nações da Europa ocidental. Por que razão não estariam elas prontas a envolver suas tropas, se o ISIS representava uma ameaça real à sua segurança interna? E por que motivo, antes de mais, os EUA iriam retirar quaisquer soldados, se isto fosse verdade?

A resposta é muito simples – o ISIS foi uma criação do Ocidente – um instrumento explicitamente concebido para ajudar a «isolar» o governo sírio e a levar a cabo operações militares e terroristas, que os EUA e seus parceiros não podiam fazer abertamente.

Foi num memorando de 2012 da US Defense Intelligence Agency (DIA) (PDF) que foi revelado que os EUA e seus aliados queriam criar o que é designado como «principado Salafista» no leste da Síria. O memorando explicitava (sublinhado adicionado):

Se a situação evoluir, existe a possibilidade de se estabelecer um principado Salafista, declarado ou não, no leste de Síria (em Hasaka e Der Zor); isto é exactamente o que as potências apoiantes da oposição desejam, em ordem a isolar o regime sírio, o qual é considerado ser um prolongamento estratégico da expansão xiita (Iraque e Irão). 

O próprio memorando da DIA clarifica adiante quais são essas potências apoiantes:

O Ocidente, os países do Golfo e a Turquia apoiam a oposição; enquanto a Rússia, a China e o Irão apoiam o regime.

Este «principado [Estado] Salafista [Islâmico]» acabaria por aparecer no momento certo, exercendo pressão suplementar sobre um governo já assediado em Damasco e, eventualmente, criando um pretexto para a intervenção directa do Ocidente na Síria.

Somente devido à intervenção da Rússia em 2015 os planos dos EUA foram gorados e a guerra aberta contra a Síria foi mantida congelada no limbo.

McGurk e outros, dos meios do poder no Ocidente, têm tentado compartimentar o que, essencialmente, foram os seus fracassos colectivos ao relacionarem-nos exclusivamente quer com o ex-presidente, Barack Obama, quer com o actual presidente, Donald Trump.

Quer o presidente Trump mantenha tropas no leste da Síria, quer não, não irá mudar em nada ou reverter a derrota significativa, estratégica e geopolítica, que Washington sofreu.

Em vez disso, a colocação destes níveis de tropas não apenas na Síria, mas também no vizinho Iraque servem para a fase seguinte da interferência dos EUA no Médio Oriente: fazer capotar a reconciliação e reconstrução.

A Guerra de Terror de Washington

Este mais recente episódio de intervenção militar dos EUA no Médio Oriente, combater terroristas que eles próprios criaram e colocaram especificamente para servirem como pretexto, é um exemplo da política externa dos EUA de «abate e queima».

Tal como os fazendeiros que queimam a floresta, pois esta não lhes dá um rendimento, para aí plantarem o que desejam em seu lugar – os EUA têm deliberadamente subvertido a ordem emergente ao nível político e económico no Médio Oriente, que não serve os seus propósitos, num lance para a substituir pela ordem que os sirva.

McGurk não faz senão admitir isso no seu artigo, argumentando – ao dar a sua versão da derrota do ISIS – que (sublinhado adicionado):

Nos quatro anos passados, o ISIS perdeu quase todo o território que alguma vez controlou. A maior parte dos seus líderes estão mortos. No Iraque quatro milhões de civis voltaram às áreas que foram controladas pelo ISIS, uma taxa de retorno não igualada na sequência de qualquer outro conflito. No ano passado, o Iraque realizou eleições nacionais e foi nomeado novo governo, dirigido por lideres competentes, pró-ocidentais, centrados na tarefa de continuar a unir o país. Na Síria, o SDF limpou totalmente o ISIS dos seus refúgios no nordeste do país, e os programas de estabilização, liderados pelos EUA, ajudaram os sírios a regressar aos seus lares.

Também afirmava:

São iraquianos e sírios, não americanos, quem participa na maior parte dos combates. A coalição, e não apenas Washington, está pagando a factura. E, ao contrário da campanha dos EUA de invasão do Iraque em 2003, esta campanha beneficia de um apoio amplo, tanto doméstico como internacional.

Por outras palavras, foi uma reorientação da campanha de mudança de regimes, abarcando tanto a Síria como o Iraque, procurando apoio interno e internacional através da utilização dum surpreendente – mas artificialmente construído – inimigo para destruir ambas as nações e permitir que os EUA e seus «parceiros de coalição» refaçam a região conforme desejam.

E enquanto McGurk enumera as realizações da coalição liderada pelos EUA, omite a existência doutra coalição bem mais eficaz e poderosa na região, liderada pela Rússia e pelo Irão.

Enquanto McGurk se gaba da tomada do deserto vazio no leste da Síria, foi o Exército Árabe Sírio, seus aliados russos e iranianos e o Hezbollah que retomaram as cidades mais importantes, com maior significado estratégico e mais populosas.

No Iraque – as Forças Populares de Mobilização, apoiadas pelo Irão – realizaram uma percentagem elevada de combates contra o ISIS e, durante o processo, criaram uma rede nacional de milícias permanente, que garante melhor a segurança dos iraquianos, do que os compromissos de defesa em parceria com os EUA e os dispendiosos contratos de armamento com os mesmos, enquanto os bandos terroristas, são financiados pelos mesmos EUA, para justificar ambos.

McGurk acaba por admitir adiante, no artigo, que a presença dos EUA pouco tem a ver com o ISIS e mais com a “diplomacia de grande potência.”

Fala acerca da “zona de influência dos EUA” na Síria e gaba-se da capacidade americana em “fazê-la respeitar”, matando iranianos e russos que entraram nela em perseguição de terroristas, que os EUA estavam abertamente a acolher.

McGurk também está repetidamente a indignar-se com o “entrincheirar dos militares iranianos ” na Síria, um desenvolvimento geopolítico que apenas foi possível pelos muitos fracassos americanos, nesta guerra por procuração, na Síria.

O Estado Islâmico foi erradicado primeiro e sobretudo, em áreas sob controlo dos governos da Síria e do Iraque, em cooperação com a Rússia e o Irão.

Os restos do ISIS aguentaram-se – não será coincidência – em territórios dentro da tal“zona de influência dos EUA.”

Os EUA continuam a citar o “ISIS” como pretexto para permanecer na Síria, enquanto, simultaneamente, admitem que sua presença na região tem como objectivo reinstalar o domínio do Ocidente e conter a influência das forças russas e iranianas, tendo ambas sido convidadas por Damasco a virem ajudar nas operações contra-terroristas.

Esta narrativa incoerente, contraditória, contrasta com os objectivos claros da Rússia e do Irão, em eliminar os terroristas e em preservar a integridade territorial da Síria e as suas acções decisivas, claras, para a realização dos referidos objectivos. A Rússia e o Irão estão também a oferecer, a todos os intervenientes desta região, incentivos amplos para se alinharem com os referidos objectivos, incluindo benefícios económicos e políticos, que acompanham normalmente a paz e estabilidade, aos níveis nacional e regional.

A Guerra à Paz de Washington

As narrativas contraditórias e ilógicas de Washington descredibilizam qualquer noção de propósito unificado no Médio Oriente. Até o seu objectivo de hegemonia regional, devido a seus múltiplos fracassos e falta de incentivos aos seus aliados, está inviabilizado, sem qualquer hipótese de sucesso.

Na ausência de incentivos razoáveis, com propósitos comuns e atraentes, ou dum plano estratégico coerente, os EUA têm-se, ao invés, virado para a sabotagem da reconciliação e reconstrução, através de tentativas de dividir a região de acordo com fronteiras étnicas, preservando os poucos terroristas que restam, ao guardá-los entre a Síria e o Iraque, no território que os EUA ocupam, e atingindo as nações e seus aliados com sanções para dificultar seus esforços de reconstrução.

As sanções contra o Irão têm um impacto directo sobre os esforços de Teerão para ajudar a Síria e o Iraque na reconstrução e reabilitação das suas respectivas economias. O mesmo fazem os EUA com Moscovo.

Os EUA também estão a impedir carregamentos de combustível de alcançarem a Síria, enquanto a própria produção síria de petróleo é capturada pela ocupação ilegal dos EUA no leste da Síria, onde se encontra muito do seu petróleo.
Um artigo da AP, entitulado, “Syria fuel shortages, worsened by US sanctions, spark anger,” relatava que:

Os sírios nas áreas sob controlo governamental, que sobreviveram aos oito anos de guerra, são agora confrontados com uma nova calamidade: as frequentes ausências de combustíveis, que têm levado à paralisação das actividades diárias nas cidades maiores.

Também relatava que:

Esta escassez é causada pelas sanções ocidentais contra a Síria e sanções renovadas dos EUA contra o Irão, um aliado chave. Mas tiveram o efeito de levantar amplas críticas públicas ao governo do presidente Bashar Assad no momento em que ele conseguiu esmagar a rebelião de oito anos contra o seu regime.

A combinação das sanções e tentativas deliberadas de prolongar a guerra por procuração na Síria ilustram a verdadeira atitude de Washington em relação a qualquer noção de “responsabilidade de proteger.”

O combustível continua a chegar ao governo sírio e aos militares onde é mais necessário, mas sua escassez causa um sofrimento extraordinário à população civil síria, como é intenção explícita de Washington.

Apesar de Washington ter perdido a guerra contra a Síria, continua a sua guerra à paz. Tenta fazer gorar os esforços da Síria em andar para a frente – e ao fazê-lo – está ilustrando da forma mais visível perante o mundo, que seus interesses próprios e seus objectivos destruíram a região – não foi o «ISIS», nem os «iranianos», nem os «russos».

Washington não está a tentar derrubar o governo de Damasco para aliviar o sofrimento do povo; está causando imenso sofrimento no povo sírio, para remover o governo de Damasco.

A campanha de ódio dos EUA continuará na Síria e na região, até que uma ordem regional e global alternativa se estabeleça, que permita às nações terem meios suficientes para se defenderem contra a agressão e ingerência dos EUA, permitindo assim que o mundo avance sem que seja para satisfazer os interesses de Wall Street e sem Washington a impulsionar a presente luta pela hegemonia americana.

Tony Cartalucci, é um investigador e escritor baseado em Bangkok, colaborador do magazine “New Eastern Outlook”.
https://journal-neo.org/2019/04/20/us-defeat-in-syria-transforms-into-campaign-of-spite/

[tradução de Manuel Banet Baptista para Observatório da Guerra e Militarismo]

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