A arma mais perigosa de todos os tempos sai da cadeia de montagem do nuclear.

ARTIGO ORIGINAL: Consortium News, James Carroll, 14-02-2019

Nas planícies do Texas uma fábrica de armamento – Panhandle – está a atingir um limiar que irá desencadear um cataclismo na nossa era, escreve James Carroll

No mês passado (Janeiro de 2019) a Administração de Segurança Nuclear Nacional (antes designada por Comissão da Energia Atómica) anunciou que a primeira de uma série de armas nucleares estratégicas novas tinha saído da cadeia de montagem da sua central nuclear de Pantex, no Texas. Esta ogiva, a W76-2, foi concebida para ser montada num míssil Trident lançado por um submarino, uma arma com um alcance superior a 12 mil km Daqui a Setembro, um certo número, não revelado, de ogivas será entregue à Marinha com vista ao seu armamento.

Aquilo em que consiste a novidade desta bomba, é que transporta uma carga útil destruidora muito inferior à dos monstros termo-nucleares que armam o Trident desde há decénios – já não o equivalente de 100 quilo toneladas de TNT, como antes, mas de cinco quilo toneladas. Segundo Stephen Young, da União dos Cientistas Conscientes (Union of Concerned Scientists), o W76-2 apenas irá produzir um terço da potência destruidora da arma que o bombardeiro americano Enola Gay, um B-29, largou sobre Hiroshima a 6 de Agosto de 1945. No entanto, é precisamente esta redução de potência destruidora que torna esta arma nuclear potencialmente, a mais perigosa jamais fabricada. Para satisfazer a exigência de «flexibilidade» da administração Trump no que diz respeito à guerra nuclear, ela não foi concebida para dissuadir os outros países de lançarem as suas armas nucleares; ela foi concebida para ser utilizada. É a arma que poderia tornar concebível aquilo que até agora era considerado «impensável ».

Enola Gay exposta no Udvar-Hazy Center em Chantilly, Va. (DoD, Kevin O’Brien)

Existem, há longos anos, armas nucleares «com fraco rendimento» nos arsenais das potências nucleares, nomeadamente os mísseis de cruzeiro, as bombas «de distribuição aérea» (transportadas por aviões) e até obuses de artilharia nuclear – armas ditas «tácticas» e destinadas a ser usadas num contexto dum terreno de batalha específico ou no teatro de uma guerra regional. A grande maioria de tais armas foi, no entanto, eliminada aquando das reduções de armamento nuclear que sucederam ao fim da guerra fria, uma diminuição tanto dos EUA como da Rússia, acolhida com alívio pelos que tinham de conduzir as guerras no terreno, os responsáveis pela potencial utilização de tais munições e que compreendiam o absurdo auto-destruidor da sua natureza.

Ao classificar-se algumas armas como «armas de fraco rendimento» em função da sua energia destruidora, foi sempre uma categoria que a realidade esvaziaria de todo o sentido (uma vez tidos em conta os danos causados pela radioactividade e as poeiras radioactivas atmosféricas, assim como a fraca probabilidade de que somente esse tipo de armas seja utilizada). Com efeito, a eliminação das armas nucleares tácticas estava em contradição directa com a lei da escalada, segundo a visão de um outro responsável militar – toda a utilização de uma tal arma contra um adversário munido de armamento idêntico desencadearia sem dúvida toda uma cadeia inexorável de escalada nuclear cujo final é dificilmente imaginável. Nenhum dos adversários jamais receberia um ataque sem que houvesse resposta, em consequência, pelo que isso seria o ponto de partida para um processo que iria degenerar rapidamente em duelo apocalíptico. Por outras palavras, a «guerra nuclear limitada» era uma quimera de doidos e – a pouco e pouco – foi universalmente reconhecida como tal. Infelizmente já tal não é o caso, actualmente.

Ao contrário das armas tácticas, as armas estratégicas nucleares intercontinentais foram concebidas para atingir directamente a pátria longínqua de um inimigo. Até agora, o seu poder destruidor extremo (muito mais importante que a destruição causada em Hiroxima) não permitia conceber cenários para a sua utilização, que fossem encaráveis de um ponto de vista prático e não estamos aqui a falar daquilo que seria moralmente aceitável. Foi precisamente para eliminar este entrave prático – a moral não parece ter entrado aqui em consideração – que a administração Trump recentemente iniciou o processo de retirada do Tratado sobre a forças nucleares de alcance intermédio, firmado na época da guerra fria, enquanto fazia sair da cadeia de montagem uma arma que irá alterar todo os sistema Trident. Perante tais tais decisões, não resta qualquer dúvida de que a humanidade está a entrar numa segunda temível era nuclear.

Eis como uma inibição com 70 anos, que sem dúvida salvou o planeta, está prestes a ser varrida num novo mundo de armas nucleares supostamente «utilizáveis » e é precisamente aqui que se situa o perigo. Claro, uma arma com um terço da potência da bomba de Hiroxima, em que 150 000 pessoas morreram, poderia matar 50 000 pessoas num ataque do mesmo tipo, ainda antes que se inicie a escalada. Em relação a tais armas nucleares, o antigo secretário de Estado George Shultz, que era um íntimo do presidente Ronald Reagan no apogeu das negociações de controlo dos armamentos que puseram fim à guerra fria, declarou : « Uma arma nuclear é uma arma nuclear. Podeis começar por utilizar uma pequena e, depois, ireis buscar uma maior. Eu penso que as armas nucleares são armas nucleares e é aí que devemos traçar a linha. »

Nuvem atómica por cima de Hiroxima a 6 de Agosto de 1945 vista desde o bombardeiro Enola Gay voando por cima da montanha Matsuyama (Wikimedia)

Quanto tempo falta para a Meia-noite ?

Até agora, um dos paradoxos da era nuclear residia no facto de que alguns opositores mais decididos destas armas eram os mesmos que participaram na sua criação. O exemplo emblemático é o Bulletin of Atomic Scientists, uma revista bimestral fundada depois dos bombardeamentos de Hiroxima e Nagasaki pelos científicos que participaram no projecto Manhattan, que criou as primeiras armas nucleares (nos nossos dias, entre os apoiantes da revista contam-se 14 premiados com o Prémio Nobel). Desde 1947, todos os anos, a página de capa do boletim serve como alarme nuclear, representando um relógio dito Dooms Day Clock [Relógio do Juízo Final NdT], cuja agulha dos minutos se aproxima a cada ano da «meia-noite» (… definida como o instante da catástrofe nuclear).

Nesse primeiro ano, a agulha encontrava-se a sete minutos antes da meia-noite. Em 1949, depois da União Soviética ter obtido a sua primeira bomba atómica, aproximou-se três minutos da meia-noite. Ano após ano, em Janeiro, a agulha é posicionada para indicar o nível de aumento ou diminuição do risco nuclear. Em 1991, após o fim da guerra fria, foi recuada até 17 minutos antes da meia-noite; depois, durante alguns anos, particularmente optimistas, desapareceu completamente o referido relógio.

Em 2005, voltou a reaparecer, indicando 7 minutos antes da meia-noite. Em 2007, os cientistas começaram a tomar nota da degradação da situação, na sua avaliação e a agulha avançou inexoravelmente. Em 2018, depois de um ano de presidência de Donald Trump, atingiu o seu ponto culminante aos dois minutos para a meia-noite, uma chamada de alarme estridente, destinada a indicar o retorno do perigo, apenas alcançado uma vez, há 65 anos. No passado mês de Janeiro, somente alguns dias após o anúncio da construção do primeiro W76-2, a página de capa do Boletim para 2019 foi revelada, a agulha continua a dois minutos do fim, ou seja, à beira da catástrofe.

Para percebermos bem até que ponto a nossa situação é precária hoje, o Bulletin of Atomic Scientists convida-nos a rever este outro momento em que esteve o relógio a dois minutos antes da meia-noite. Se a construção de uma arma nuclear de fraca potência marca a viragem para um mundo mais perigoso, é irónico perceber que, na outra vez em que isso aconteceu, se tratava do fabrico de uma arma nuclear no extremo oposto: uma «super» bomba, como era então chamada, a bomba a hidrogénio. Era em 1953 e estávamos num momento de viragem que poderia ser o mais fatídico da história nuclear, até hoje.

Em 1949, depois dos soviéticos terem feito explodir a sua primeira bomba atómica, os Estados Unidos lançaram-se num programa intensivo para construir uma arma nuclear muito mais potente. Abandonada depois da Segunda Guerra Mundial, a fábrica de Pantex foi reactivada e tornou-se a principal produtora das armas nucleares americanas.

A bomba atómica é uma arma baseada na fissão, isto é, em que os núcleos dos átomos são cindidos em elementos cuja soma total pesa menos que os átomos de origem. A diferença transforma-se em energia. Uma bomba a hidrogénio utiliza o calor intenso gerado por uma fissão (portanto termonuclear) para desencadear uma «fusão», ou a combinação de elementos, muito mais potente, o que implica uma perda de massa ainda mais importante, que se transforma em energia explosiva de um tipo inimaginável até então. Uma bomba H gera uma força explosiva de 100 a 1000 vezes maior que a potência destruidora de bomba de Hiroxima.

Meia-noite menos dois minutos do relógio do apocalipse (Union of Concerned Scientists)

Face a um poder tal, que os humanos consideravam ser apenas próprio dos deuses, os ex-membros proeminentes do projecto Manhattan, entre os quais Enrico Fermi, James Conant e J. Robert Oppenheimer, opuseram-se firmemente ao desenvolvimento de uma tal arma, considerada uma ameaça real à espécie humana. A Super Bomba seria, segundo Conant, «causadora de genocídio ». Seguindo a linha destes cientistas, os membros da Comissão de Energia Atómica aconselharam – por três votos contra dois -não implementar uma tal arma de fusão, mas o presidente Truman não ficou inibido pelo conselho e decidiu avançar.

Em 1952, ao aproximar-se o primeiro ensaio da bomba H, os cientistas nucleares, sempre preocupados, propuseram que se adiasse indefinidamente o ensaio para evitar uma «super» rivalidade com os soviéticos. Sugeriram que se aproximasse Moscovo para concluir um acordo de limitação mutua do desenvolvimento termonuclear apenas ao âmbito da pesquisa e não passar aos ensaios reais de tais armas, tanto mais que uma explosão destas nunca pode ser feita secretamente. A explosão experimental de uma bomba de fusão seria facilmente detectada pelo outro protagonista, que poderia então realizar os seu próprio programa de ensaios. Os cientistas propuseram que Moscovo e Washington traçassem esta linha de controlo dos armamentos, medida que as duas nações aliás, acabaram por chegar a acordo vários anos mais tarde.

Nessa época os Estados Unidos é que tomavam a iniciativa. Ainda não se tinha ainda entrado verdadeiramente na corrida desenfreada aos armamentos e à possibilidade de acumular dos dois lados milhares de armas deste tipo. Em 1952, os EUA dispunham de um arsenal atómico de uma centena de unidades, a União soviética de uma dúzia. O presidente Harry Truman estudou a proposta de adiar indefinidamente o teste. Ele foi apoiado nesta questão por personalidades como Vannevar Bush, que dirigia o Departamento da Investigação Científica e Desenvolvimento, que tinha supervisionado o projecto Manhattan durante a guerra. Os investigadores como ele tinham já chegado à conclusão que iria demorar muito tempo a ser evidente para os governantes – cada progresso de uma potência nuclear traria inevitavelmente a outra a igualá-la e isto, até ao infinito. O título do romance de James Jones que teve muito sucesso nessa época, reflecte perfeitamente esse sentimento: « From here to eternity ». [«Daqui para a eternidade», NdT]

Nos últimos dias da sua presidência, no entanto, Truman decidiu-se contra um adiamento indefinido do ensaio – ou seja contra uma interrupção na corrida e na proliferação de armas nucleares, o que poderia muito bem ter mudado a história. No 1º de Novembro de 1952, explodiu a primeira bomba H – «Mike» – numa ilha do Pacífico. Tinha 500 vezes mais potência letal que a bomba que destruiu Hiroxima. A sua bola de fogo de cerca de 5 km de largura, não apenas destruiu a estrutura de três andares construída para a sustentar, como toda a ilha de Elugelab e pedaços de território em ilhas vizinhas.

E foi assim que começou a era do termonuclear e isto também marca o princípio da actividade da cadeia de montagem da fábrica Pantex. Em menos de 10 anos, os EUA alinhavam 20 000 bombas nucleares, em maioria bombas H; Moscovo contava com menos de 2 000. Então, 3 meses após esse primeiro teste, o Bulletin of Atomic Scientists deslocou a agulha do relógio a dois minutos para a meia-noite.

Uma versão do mundo produzida pela loucura

Pode qualificar-se de paradoxal a comparação do que se chama um « mini-nuke » e a criação há cerca de seis decénios da « super », mas honestamente qual o sentido de « mini » quando se está falando de guerra nuclear? Estamos neste ponto em 2019, tal como em 1952, nas planícies do Texas onde foram fabricadas tantas armas de destruição, na mesma fábrica de armamentos. Panhandle acaba de atingir um patamar decisivo. É realmente irónico: compreendeu-se finalmente aquilo que diziam os cientistas – a bomba H é causadora de genocídio – e por isso durante 4 decénios de grande hostilidade entre o Leste e o Ocidente, as pressões contra a sua utilização revelaram-se insuportáveis. Hoje, o W76-2 que equipa os Trident bem poderia ter um efeito totalmente diferente – o seu primeiro acto de destruição poderia ser o fim de um longo tabu, após Hiroxima e Nagasaki, contra a utilização da arma nuclear. Por outras palavras, após tantos anos da ilha de Elugelab ter sido riscada da face da Terra, a «arma absoluta» torna-se por fim coisa normal.

Trump varreu a teoria do «homem louco» de Richard Nixon – a convicção do antigo presidente que um adversário devia temer que um dirigente americano fosse suficientemente instável para premir o botão nuclear – que fazer perante isto ? Mais uma vez, os cientistas nucleares cépticos, que desde três quartos de século compreenderam, com claridade cristalina, os problemas essenciais do enigma nuclear, mostram o caminho. Em 2017, a «Union of Concerned Scientists», em colaboração com «Physicians for Social Responsibility», lançou “Salvos da Extinção”: um apelo à prevenção da guerra nuclear, « uma iniciativa nacional procurando mudar fundamentalmente a política americana em matéria de armamento nuclear para nos afastarmos da via perigosa na qual estamos caminhando ».

Esta coalição ampla de organizações cívicas, de municípios, de grupos religiosos, de educadores e de cientistas, pretende fazer pressão sobre os organismos governamentais a todos os níveis, a sensibilizar em todos os fórums sobre a questão nuclear e incitar um grupo cada vez maior de cidadãos a pressionar por uma mudança da política nuclear americana. Salvos da Extinção tem cinco exigências, bem necessárias aos Estados Unidos e à Rússia num mundo onde eles se estão retirando de um tratado nuclear chave da era de guerra fria e onde talvez outras retiradas venham a seguir, incluindo o pacto New START que caduca dentro de dois anos [tratado entre a Rússia e os EUA assinado a 8 de Abril de 2010 em Praga e que entrou em vigor a 5 Fevereiro de 2011, com uma duração de dez anos NdT]. As cinco exigências são:

  • Não à utilização em primeiro lugar das armas nucleares. (Recentemente a senadora Elizabeth Warren e o representante Adam Smith apresentaram , às duas câmaras do Congresso, uma lei proibindo o recurso inicial à arma nuclear para impedir Trump e os futuros presidentes de lançarem uma guerra nuclear).
  • Fim da autoridade de lançamento não controlada do presidente. (No mês passado, o senador Edward Markey e o representante Ted Lieu voltaram a apresentar um projecto lei com esse objectivo)
  • Não aos detonadores nucleares.
  • Não à renovação e substituição permanente do arsenal (como o fazem actualmente os EUA, gastando cerca de 1,6 biliões de dólares em cada trinta anos).
  • Sim a um acordo de desarmamento entre os Estados dotados de armas nucleares.

Estas exigências vão do realizável no curto prazo, ao longo prazo esperado, mas enquanto grupo, «Back from the Brink» (»salvos da Extinção») define bem o que deveria ser o realismo lúcido nesta nova versão da nossa era nuclear inerente ao mundo segundo Donald Trump.

Na sequência próxima da política presidencial, a questão nuclear figura à cabeça das prioridades de cada candidato. Ela deve estar no centro de cada fórum e no coração de cada decisão dos eleitores. É preciso agir antes que o W76-2 e os seus sucessores venham mostrar, a um planeta pós- Hiroxima, o que é verdadeiramente a guerra nuclear.

James Carroll, publica regularmente no TomDispatch, ex-colaborador do «Boston Globe», é autor de 20 livros.

Fonte: Consortium News, James Carroll, 14-02-2019

[Traduzido por Manuel Baptista]

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